sexta-feira, 17 de junho de 2011

ACASO - DE ÁLVARO DE CAMPOS

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa



2 comentários:

  1. Viva!
    Há uma loira (será que é loira?!...)que já não conheço
    Ficou lá atrás no tempo
    Esse o da meninice
    Tenho saudades, do tempo e da loira
    Um dia, um dia ainda vou atrás do tempo que me fugiu.

    Com um beijo
    ManuelNeves

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  2. No acaso da vida, o acaso vai acontecendo. Em qualquer lugar, em qualquer tempo, mesmo no tempo sem tempo. As outras ruas e os outros lugares,por vezes não passam de lugares comuns. E as raparigas loiras desta e daquela rua, neste e naquele tempo, musas inspiradoras dos mais brilhantes versos, tingiram os cabelos com a neve branca do tempo. As recordações vivem na memória do tempo e continuam a enfeitar as ruas da nossa saudade. E no acaso da vida o ocaso vai acontecendo...

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